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História e Memória

  • eduardhenry8
  • 4 de jun. de 2024
  • 8 min de leitura

Com a organização das sociedades com escrita ocorreu uma transformação da memória coletiva a partir do momento em que os homens passaram a inscrever sua história nos monumentos epigrafados. Outro avanço foi a capacidade de registrar os fatos em documentos escritos. O desenvolvimento dessa escrita estava associado ao desenvolvimento dos centros urbanos que, por sua vez, ampliaram as necessidades humanas.


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Com base na língua escrita surgiu a criação dos exercícios de memória. Mesmo letrados, os gregos, por exemplo, preocupavam-se em praticar exercícios de memorização. Havia entre os gregos da antiguidade um enaltecimento à prática da memorização independentemente da escrita.


Fazendo observações sobre o período medieval, Le Goff[1] (2013) aponta para a realidade europeia de dominação da Igreja, a qual exercia um monopólio intelectual que direcionava e orientava a memória coletiva. Tanto a religião cristã quanto a judaica valorizavam a memorização como um dos sustentáculos de fé.


A memória ganhou, então, um status diferenciado a partir desse período, o que é perceptível pela ênfase do papel da memória no ensino, articulando oral e escrito, divisão das memórias coletiva em litúrgica e laica, desenvolvimento da memória dos mortos, entre outros exemplos. “Nesta época, saber de cor é saber” (LE GOFF, 2013, p. 412).


O idoso foi, para os homens medievais, o homem memória e portanto valorizado em sua cultura. A memória era transmitida de geração a geração e o escrito era apenas um suporte. Dessa forma surgiram os arquivos, que tinham a função de conservar a memória escrita.


Os estudos a respeito da memória na História são relativamente recentes. Especialmente nessa categoria, os historiadores do século XX, muitos que se sobressaíram nesta pesquisa, estão vinculados à Nova História. No entanto tantas outras correntes também se utilizam desse recurso, basta observarmos estudos da Nova Esquerda Inglesa ou mesmo as obras de autores como o italiano Carlo Ginzburg ou mesmo o inglês Edward Thompson que utilizam amplamente tais recursos em suas pesquisas.


Na perspectiva da Psicanálise, a memória teve avanços significativos. Freud desenvolveu pesquisas que afirmavam que o ser humano seleciona o que vai memorizar e que ela não é apenas um receptáculo de informações aleatórias. Dessa maneira, compreende-se que a memória é, de certa forma, seletiva. Freud remeteu-se a Platão, que afirmava que a ela é tal como um bloco de cera, onde nossas lembranças são impressas.


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Sigmund Freuyd (1856-1939)

A memória tornou-se um objeto de estudo da História, especialmente no campo da História Oral, em que os estudiosos dessa área se esforçam em perceber as formas da memória e como atua na compreensão a respeito da relação passado/presente.


Observamos que temas relacionados à memória nos últimos tempos têm sido revitalizados e uma gama considerável de estudiosos buscam desenvolvê-los (NORA, 1993, p. 8)[2]. Sendo assim, observamos cinco autores que dialogam e que trouxeram importante contribuição para a estruturação do presente trabalho: Maurice Halbwachs[3], Pierre Nora, Michel Pollak[4], Joel Candau[5] e Jacques Le Goff[6].


Maurice Halbwachs[7], sociólogo que atuou no primeiro quartel do século XX, por exemplo, trabalhando com a distinção entre memória histórica e memória coletiva afirmou que onde existe uma história, existem muitas memórias. Para o autor, a memória assume um papel importante porque revela aquilo que foi vivido. Teóricos como Halbwachs (1990) e Pierre Nora (1993), que questionam a distinção entre memória e História e afirmam que são concepções inseparáveis.


Halbwachs (1990) afirma que a memória individual só existe a partir de uma memória coletiva. Todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo do qual fazemos parte, sejam sentimentos, ideias, reflexões, são de maneira inexorável inspirados pelo ele.

A memória individual, segundo o autor, refere-se a um ponto de vista sobre a memória coletiva. Esse olhar deve ser sempre analisado, levando em consideração o lugar ocupado pelo sujeito no grupo e através das relações mantidas com outros meios.


As lembranças podem, a partir da vivência de grupo, ser reconstruídas ou até mesmo simuladas. Halbwachs (1990, p. 77) afirma que a lembrança é uma imagem engajada em outras imagens e que podem ser simuladas a partir do contato do indivíduo com as lembranças de outros indivíduos, criando, assim, uma percepção histórica por meio do compartilhamento de memórias.


A memória individual, portanto, não é isolada e frequentemente toma por referência elementos externos ao sujeito. Halbwachs (1990, p. 77) afirma também que a memória coletiva está pautada na continuidade. Deve ser vista sempre no plural: memórias coletivas.

Para Halbwachs (1990, p. 77) as fontes orais são tão relevantes e confiáveis quanto as escritas, e ambas devem ser estudadas e analisadas de maneira crítica, visando à confiabilidade e à cientificidade das informações.


Outro historiador que se dedicou ao tema memória, Pierre Nora[8] (1993), reflete sobre os princípios da história e da memória e as opõe, tal como Halbwachs.


Para Nora (1993, p. 45), a memória é objeto da História e é filtrada por ela, o que impede diferenciações entre a memória coletiva e a memória histórica. Para esse autor, a memória já não existe, e tudo o que se considera memória é História. Resta, portanto, apenas lugares de memória.

 

Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados e monumentos, santuários são as marcas e testemunhos de uma outra época. São os rituais de uma sociedade sem rituais, sacralizações passageiras de uma sociedade que continuamente dessacraliza, sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo em uma sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos. (NORA, 1993, p. 45).

 

Michael Pollak (1989, p. 15)[9], por sua vez, compreende a memória de maneira diferenciada. Ele não vê as relações entre história e memória de maneira pessimista. Observando uma distinção entre memória oficial e o que chamou de memória subterrânea, numa alusão às camadas populares, entende que as memórias marginalizadas abriram caminhos e novas possibilidades no campo da História Oral.


Pollak (1989, p. 15) afirma que em momentos de crise essas memórias são subterrâneas e afloram, reivindicando a afirmação de sua identidade que, muitas vezes, por pertencer a um grupo minoritário, variavelmente encontram-se marginalizadas; memórias “que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível e afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos exacerbados”.


Para Pollack (1989, p. 3-15), diferentes pontos de referência, que de certa forma estruturam a memória individual acabam inseridos na memória coletiva. Podem ser elencados monumentos, patrimônio arquitetônico e seus estilos, paisagens, datas, personagens históricos, tradições, costumes, folclore, músicas culinária e outros.

Pollak (1989, p. 15) também alerta para a categoria do não dito, afirmando que a memória também é feita daquilo que não é exposto, decorrendo-se dos motivos mais diversos: expor-se a mal-entendidos, de ser punido pelo que diz ou mesmo pela angústia de não ser ouvido.

 

Existem nas lembranças, de uns e de outros, zonas de sombra, silêncios, não ditos. As fronteiras desses silêncios e não ditos com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento. (1989, p. 15).

 

A memória serve, portanto, como uma força de identidade que nos habilita a reconhecer, identificar e compreender as maneiras que a escola que nos propomos a estudar ainda marcam a vida daqueles que participaram, em algum momento, da história da instituição.

Ao fazer a análise a respeito de memória e identidade, Candau (2012, p. 24), por exemplo, propôs uma taxonomia referente à memória individual. Ele a divide em três tipos:

 

Protomemória – uma memória incorporada nos hábitos dos indivíduos. É uma memória imperceptível, aquela que ocorre sem que o indivíduo tenha consciência, como o andar de bicicleta ou os gestos realizados por uma pessoa ao cumprimentar outra;

Memória de alto nível – é a memória propriamente dita. Evocada de forma intencional ou não, de lembranças da própria vida ou do saber adquirido em sua experiência. É a memória que também é feita de esquecimento, tal como mencionado anteriormente;

Metamemória – aquilo que o indivíduo sabe ou pensa sobre a memória. (CANDAU, 2012, p. 21-23).

 

Entende-se, portanto, que tal classificação se aplica quando se trata de indivíduos. A protomemória, por exemplo, é inválida para se pensar em grupos ou sociedades. Isso porque não há uma única memória incorporada nas ações de um grupo como um todo. Tratar de grupo ou sociedade só é possível, segundo Candau (2012, p. 24), utilizando o conceito da metamemória. Tal conceito aparece conjuntamente à ideia de uma memória coletiva, mas é preciso salientar que:

 

[…] é impossível admitir que essa expressão designe uma “faculdade”, pois a única faculdade de memória realmente atestada é a memória individual; assim, um grupo não recorda de acordo com uma modalidade culturalmente determinada e socialmente organizada, apenas uma proporção maior ou menor de membros desse grupo é capaz disso. (CANDAU, 2012, p. 24).

 

Nesse sentido, o uso do termo “memória coletiva” representa uma forma de memória supostamente comum ao grupo, geralmente usada como forma de reforçar sua identidade.


Seguindo as análises sobre memória e história, é importante verificar o que o historiador Jacques Le Goff[10] (2013) defende sobre o tema. Ele aponta para a necessidade de diferenciar as sociedades de memória oral e as de memória escrita. Afirma que a memória tem um sentido amplo e quase irrestrito na fixação do comportamento das sociedades. Assim, apoiado nos estudos do antropólogo francês Leroi-Gourhan (1977), Le Goff (2013, p. 389) classifica a memória em três categorias:

 

Memória específica – responsável pela fixação dos comportamentos de espécies animais;

Memória étnica – assegura a reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas;

Memória artificial – eletrônica em sua forma mais recente, que assegura sem recurso ao instinto à reflexão, a reprodução de atos mecânicos encadeados. (LE GOFF, 2013, p. 389).


Le Goff (2013, p. 389) afirma que a cultura das sociedades ágrafas possui enormes diferenças em relação às sociedades com escrita, no entanto, não são radicalmente divergentes. Ele afirma que os “homens memória” são os responsáveis, nas sociedades sem escrita, pela manutenção das tradições do povo. Isso acaba por anular a necessidade de estratégias de memorização.



[7] Maurice Halbwachs é sociólogo da escola durkheimiana. Estudou os problemas do nível de vida e da evolução das necessidades sociais. Segundo Halbwachs, existiriam tantas formas de viver e de se relacionar com os bens materiais quantos os grupos sociais. A conservação desses modus vivendi seriam conservados por meio de uma "memória coletiva". No entanto ela não impediria o acontecimento de mudanças nos grupos, diante de ocorrências nos contextos econômicos e sociais. Tal como Marc Bloch, o sociólogo teve sua vida abreviada no final da Segunda Guerra Mundial, quando foi executado num campo de concentração nazista.

[8] Pierre Nora é um historiador francês membro do grupo da Nova História. Seus estudos abordam questões de identidade francesa, memória e ofício do historiador.

[9] Michael Pollak foi historiador e sociólogo. Nasceu na Áustria (1948) e defendeu sua tese sob orientação de Pierre Bourdieu. Desenvolveu pesquisas sobre as condições de vida nos campos de concentração através de entrevistas com sobreviventes. Estudou sobre o estilo de vida dos homossexuais e lançou a primeira pesquisa sobre a Aids na França, em 1985. Faleceu em 1992.

[10] Jacques Le Goff, historiador de ofício, nasceu em janeiro de 1924, em Toulon, na França. É considerado um dos maiores medievalistas do mundo. Seu trabalho se destaca especialmente nas últimas décadas, com o movimento da Nova História, a partir dos anos de 1970, exercendo grande influência no “fazer histórico”. 



 REFERÊNCIAS

LE GOFF, J. História e memória. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2013.

LEROI-GOURHAN, A. Les voies de l’histoires  avant l’écritures. In J. LE GOFF & P. NORA (ORGS) Faire de l’histoire, I. Nouveaux problems. Paris : Gallimard, 1974.

NORA, P. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2013.

POLLAK, M. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992.

CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

 
 
 

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